O longo caminho da experiência de uma vida se faz no bojo da construção da história e da captação das mesmas experiências-históricas, no confronto e na partilha. Vejamos um homem, Francisco de Assis, no confronto-partilha com a cruz (melhor dizendo, o Crucificado). Encontrou uma nova dimensão para sua vida que se materializou não somente nos seus atos, mas na sua compreensão global de tudo o que existe pois, afinal, ele não se dirigia mais às coisas de modo neutro, mas as denominava irmãs. E mesmo àquele fenômeno que escapava da compreensão humana normal, a morte, era também encarada como irmã.
O horizonte histórico da pessoa se dá na concretude da vivência social dos relacionamentos. Nada no humano escapa do âmbito da capacidade, vontade e necessidade relacional. Por isso, quando afirmamos que quando da morte de nada pode ser levado desta vida, cometemos um erro, pois há uma única coisa que "levamos" conosco: é justamente tudo aquilo que construimos no campo do relacionamento, e todo o amor que distribuimos no mundo. Contudo, na verdade do fato nem mesmo levamos, mas deixamos. Parece-me que foi Madre Teresa de Calcutá que afirmou do momento da morte que a única coisa que seremos cobrados por Deus será o tanto que amamos. Então, isso nos leva à seguinte reflexão: o ser humano inscreve no coração dos outros a marca de sua existência. Mesmo depois que partimos dessa vida, continuamos a existir no coração das pessoas que conviveram conosco: todo ser humano faz história, e faz a história. Estamos na história e existimos concretamente a partir de quando sabemos e sabem de nós, e também sabemos dos outros e deixamos que eles saibam de nós. Pode parecer muito pragmática essa afirmação, mas está contida numa noção de existência onde se leva em consideração a suprema valorização da pessoa humana como ser, acima de tudo, de relação.
Quero inserir Francisco de Assis nesta dinâmica no que diz respeito a sua experiência com o Crucificado. É sabido que na sua época existia uma profunda e difundida espiritualidade da cruz. Nosso querido irmão não escapa a esse "costume". Mas, nele se configura uma outra mens relacional (que não é melhor e nem mais baixa) com o Crucificado e que penetra toda a sua existência a ponto de ampliar seu campo de atuação na vida de outras pessoas. Francisco olha o Crucificado a partir de um lugar situado: Jesus situado e Francisco também situado. Ele chora a partir eda Cruz; ele fala com o Crucificado (São Damião, mesmo que hoje saibamos constituir um recurso literário, continua a expressar algo profundo para nós); ele recomenda muitas vezes a volta ao Crucificado como "paradigma fenomenal"... Não é algo apenas que parte do sentimento interior e pessoal, mas se materializa, se configura, estrutura e constitui sua visão de mundo. Basta analisar suas orações, suas cartas, sua biografia (hagiografia). Para Francisco o Crucificado é o outro concreto de sua vida que o abre para uma experiência de mundo e das pessoas. Existe uma experiência-histórica real que alcança o âmago da realidade de Francisco e "produz" uma perspectiva e uma vivência diferenciada (para usar uma expressão do futebol tão comum hoje em dia para se falar de um bom jogador). Podemos constatar também uma imagem de Deus muito peculiar. É o Todo-Poderoso, mas está partilhando de si na vida do humano. Essa é a realidade da tríplice devoção de Francisco: Cruz, Eucaristia e Presépio. Em todos esses fatores ele divisa o Deus que participa de tudo o que é humano.
É impressionante como se torna plástico em São Francisco a realidade da encaranação. E isso que denominamos de tríplice devoção de Francisco vai nessa mesma direção do entendimento da pobreza de Deus e minoridade da vida vivida na compreensão da fé. A verdade principal é: Deus vem e nós vamos a ele, e nunca foi o contrário. Brilha, assim, para a humanidade uma nova perspectiva. E para isso comemoramos 800 anos de fundação da vida do carisma. Por que Francisco inscreveu no coração da humanidade sua dimensão própria de relacionamento concreto-existencial-histórico que não respeita tempo e espaço, mas que durará até o último humano que respirar na Terra.
Por isso que o franciscano é um apaixonado pela justiça social, pela igualdade, pelo amor aos mais pobres, excluídos, marginalizados, as minorias... , pois não aceita que ninguém deixe de participar dos benefícios da humanidade que Deus oferece abundantemente e gratuitamente. No nível do relacionamento deve imperar a vontade do bem-estar bio-físico-psico-social-espiritual da pessoa na sua integralidade, pois somos todos pertencentes ao grande conjunto da família humana.
MDT
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